A eterna peleja do general Abreu e Lima
Por Paulo Santos Oliveira, publicado originalmente na Revista de História da Biblioteca Nacional, ano 6, nº 6, em novembro de 2010
Abreu e Lima foi um defensor implacável das liberdades civis. Por elas, arriscou a vida e até a alma
Quando o jovem capitão de artilharia José
Inácio de Abreu e Lima (1794-1869) fugiu do cárcere da Fortaleza de São
Pedro, em Salvador, em outubro de 1817, seu futuro era mais do que
incerto. A revolução que deveria libertar o Brasil do domínio português,
pela qual tanto havia trabalhado, acabara de ser sufocada, ao custo de
mais de 1.500 mortos e feridos e cerca de 800 degredados, em Pernambuco,
na Paraíba, no Ceará e no Rio Grande do Norte. Centenas de outros
patriotas também estavam presos, sua rica família tivera os bens
sequestrados, e ele e seu irmão Luís foram obrigados a assistir ao
fuzilamento do pai, o advogado e ex-sacerdote apelidado de “Padre Roma”
(1768-1817), na Bahia, para onde fora enviado como agente secreto do
Governo Provisório pernambucano.
Aos 23 anos, José Inácio tinha apenas uma
certeza: jamais deixaria de lutar pela liberdade e pelo direito dos
cidadãos de fazerem suas próprias escolhas, inclusive as religiosas. E
depois de arriscar a vida em dezenas de batalhas pela América do Sul,
ele, um católico praticante, ainda enfrentaria a ira da Igreja por estas
mesmas causas, aos 74 anos, pondo em risco sua alma imortal.
Após a fuga da prisão, os irmãos Abreu e
Lima embarcaram clandestinamente para a Filadélfia, nos Estados Unidos,
onde, no início de 1818, se abrigavam muitos combatentes pela liberdade
nas Américas, e de lá partiram para a Venezuela. Luís ficou pelo
caminho, pois conseguiu emprego em Porto Rico. José Inácio seguiu
adiante, e no começo de 1819 chegou a Angostura, cidade erguida no meio
da selva amazônica, às margens do Rio Orenoco, onde Simón Bolivar
(1783-1830) havia montado o seu quartel-general. Lá, o pernambucano se
tornou colaborador do Correo del Orinoco, porta-voz dos rebeldes
bolivarianos, e polemizou com o jornalista Hipólito da Costa
(1774-1823), que, de Londres, editava mensalmente o Correio Braziliense,
no qual defendia uma monarquia constitucional no Brasil e atacava a
revolução nordestina de 1817.
Em Angostura, o capitão também assistiu
ao congresso de fundação da Terceira República venezuelana. Em seguida,
engajado no Estado-Maior de um exército de dois mil homens comandado por
Bolívar, atravessou a América do Sul numa marcha duríssima: primeiro,
cruzando a Amazônia; depois, a vasta região pantanosa dos llanos
debaixo de chuva; e, finalmente, escalando os Andes em pleno inverno.
Em cinco meses chegou ao altiplano boyacaense com uma tropa desfalcada,
doente e desarmada. Mas com o auxílio da população local, o Libertador
derrotou a Terceira Divisão, um dos melhores corpos militares da
Espanha, e libertou o vice-reino de Nova Granada — o Panamá e a Colômbia
atuais.
Abreu e Lima acompanhou Bolivar nessa
jornada épica, participando de todas as batalhas e ganhando várias
condecorações, além da fama de valente. Também esteve nas campanhas dos
três anos seguintes, que decretaram a libertação de Quito, atual
Equador; da Venezuela e do antigo Peru, que se dividiria nos atuais Peru
e Bolívia. Mas, consolidadas as independências, explodiram as intrigas e
as disputas pelo poder. À maior parte das elites venezuelanas,
granadinas e quitenses não interessava que suas nações permanecessem
unidas numa só, a Grã-Colômbia, como queria Bolívar, e também não
aprovavam vários de seus projetos, como abolição da escravatura, reforma
agrária, educação popular, etc.
Em 1825, o já coronel Abreu e Lima se viu
envolvido em outros confrontos de natureza política. Passou a ser
atacado por gente que queria atingir o Libertador, de quem era fiel
escudeiro, e o fato de ser estrangeiro – pior ainda, brasileiro – fazia
dele um alvo fácil. Ora, o Brasil acabara de se separar de Portugal,
mas, ao contrário dos seus vizinhos, transformara-se em império, não em
república. E o imperador D. Pedro I era tido como um absolutista
ferrenho, ligado às monarquias europeias mais conservadoras, inclusive
pelo casamento com uma princesa austríaca, D. Leopoldina. Caluniado pela
imprensa por Antônio Leocadio Guzmán (1801-1884), o coronel, de
temperamento exaltado, feriu o rosto do desafeto com o sabre em plena
rua. Por esse gesto foi submetido a Conselho de Guerra e enviado para o
deserto de Bajo Seco, onde ficou encarcerado por seis meses.
No final de 1826, Abreu e Lima deu baixa
do exército, mas Bolívar o chamou de volta, em 1828, e o incumbiu, junto
com o abade Dominique Dufor de Pradt (1759-1837) de defendê-lo, no
Courrier Français, dos ataques que o filósofo Benjamin Constant
(1767-1830) lhe fazia em outros jornais franceses. A guerra política
declarada contra as ideias bolivaristas havia cruzado o Atlântico.
Desgastado pelas campanhas difamatórias e
sofrendo de tuberculose já em estágio avançado, o Libertador renunciou à
Presidência dois anos depois, e saiu de Bogotá rumo ao litoral
colombiano, de onde pretendia partir para o exílio na Europa. Abreu e
Lima, promovido a general, também o acompanhou nesse derradeiro trajeto.
Bolívar morreu em Santa Marta, na
Colômbia, no dia 17 de dezembro de 1830. Poucos meses depois, o
pernambucano e outros militares estrangeiros foram expulsos de lá por
inimigos políticos do antigo líder que haviam ocupado o poder. Depois de
uma viagem pela Europa, onde se encontrou com o rei Luís Felipe, da
França, e com D. Pedro I, que já havia abdicado do trono brasileiro em
1831, o general voltou para o Brasil no ano seguinte. Estabeleceu-se no
Rio de Janeiro e alinhou-se aos conservadores do Partido Caramuru,
abraçando as mesmas ideias de Hipólito da Costa, com quem polemizara na
juventude. Decepcionado com o esfacelamento da Grã-Colômbia, Abreu e
Lima passou a ver na monarquia constitucional o único sistema capaz de
manter a nação brasileira coesa. Por isso, pós de lado seus
ressentimentos com os Bragança, que tanto mal haviam causado à sua
província e à sua família. Para ele, o estabelecimento de uma República
no Brasil levaria ao poder os donos de terras, que também eram donos da
maioria dos votos. E esses “senhores feudais” – como Abreu se referia
aos grandes proprietários de terras – certamente não se preocupariam com
o bem-estar das massas.
Essas convicções fizeram com que Abreu e
Lima entrasse em conflito com vários liberais, como o jornalista
Evaristo da Veiga (1779-1837), de quem recebeu injúrias e até ameaças de
morte, e o cônego Januário da Cunha Barbosa (1780-1846), um dos
fundadores do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, em 1838. Em
1836, ele lançou um jornaleco, O Raio de Júpiter, para defender a
regência de D. Januária, irmã do futuro imperador Pedro II. Em 1843,
publicou uma História do Brasil e foi novamente atacado pelo cônego
Januário, dessa vez como “plagiador”. Desencantado com a Corte, o
general voltou para Recife, onde fundou o jornal A Barca de São Pedro, e
em 1848 se envolveu em outra das muitas revoltas libertárias
pernambucanas, a Praieira. Considerado um dos cabeças do movimento,
Abreu e Lima passou dois anos preso na ilha de Fernando de Noronha.
Anistiado, ele se retirou da política, mas não se afastou das polêmicas.
Em 1855, publicou O Socialismo, no qual criticava os principais
defensores dessa linha de pensamento anteriores a Karl Marx (1818-1883),
que não foi citado. Embora reconhecesse o conflito de classes, ele não
defendia a superioridade de nenhuma delas. Para ele, “o socialismo não
era uma ciência, nem uma doutrina, nem uma religião, nem uma seita, nem
um sistema, nem um projeto, nem uma ideia”, mas “um desígnio da
Providência”.
Mesmo tendo se assumido politicamente
como conservador, continuou a ser um defensor de todas as liberdades –
inclusive a religiosa -, o que lhe acarretou novos transtornos. Ao
distribuir entre amigos algumas Bíblias que ganhara de protestantes
ingleses, ele enfureceu o monsenhor Joaquim Pinto de Campos, um
sertanejo bravo e extremamente reacionário, que passou a atacá-lo
violentamente no Diário de Pernambuco ao longo de 1868. E o velho
artilheiro disparava seus obuses de volta pelo Jornal do Recife.
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