OS NOSSOS VERDADEIROS ANCESTRAIS.
Nossos ancestrais eram canibais?
Cientistas admitem que antepassados do homem moderno praticavam a antropofagia. Falta compreender o por quê
(C) MAURICIO ANTON/SPL/LATINSTOCK
É provável que mulheres, homens e crianças tenham servido de alimento a
outros humanos na região de Serra de Atapuerca, na Espanha, há 800 mil
anos
O arqueólogo britânico Paul Bahn costuma dizer com ironia que a prática
do canibalismo na pré-história é uma hipótese difícil de engolir.
Trata-se de um assunto delicado, um tabu, pois é difícil para nosso
senso de ética assumir ancestrais antropófagos na árvore genealógica.
Difícil também é o trabalho dos pesquisadores em identificar e catalogar
os objetos de pesquisa, uma vez que são raros e sempre discutíveis, ou
seja, são mais indícios do que provas formais.
Entre as
evidências consideradas fracas estão as marcas de mordidas humanas em
restos humanos. Seriam fruto de atos de canibalismo. Nos cemitérios de
Zhoukoudian, na China, de Steinheim, na Alemanha, e no monte Circeo, na
Itália, crânios com um furo no osso occipital (na região da nuca)
suscitam uma outra questão: o cérebro teria sido retirado para servir de
refeição?
Por outro lado, entre os indícios considerados como
provas estão os ossos humanos quebrados e os que possuem traços de
descarnamento, às vezes em parte calcinados e misturados a resíduos de
origem animal. “A origem dessas práticas parece (...) bastante recuada
no tempo. As ossadas humanas mais antigas que conhecemos na Europa,
encontradas no sítio arqueológico de Gran Dolina, em Atapuerca, norte da
Espanha, têm aproximadamente 800 mil anos, estavam misturadas a restos
de animais e possuem marcas de decapitação, estrias de corte e fraturas
provocadas pela ação humana, particularmente na região da medula óssea.
Mulheres, homens e crianças provavelmente foram consumidos por outros
humanos”, afirma Marylène Patou-Mathis, pesquisadora do Centro Nacional
de Pesquisa Científica (CNRS), na França, e especialista em
pré-história.
Outros exemplos são do período Paleolítico, como o crânio quebrado do Homo erectus
de Tautavel, encontrados na parte oriental dos Pireneus, em território
francês, com idade estimada em 450 mil anos. Ainda existem muitos casos
relacionados ao homem de Neandertal: “Entre 100 mil e 120 mil anos, seis
neandertais, inclusive uma criança de 6 ou 7 anos e um adolescente de
mais ou menos 15 anos, foram despedaçados como um animal caçado na
região de Baume Moula-Guercy, em Ardèche”, diz Marylène Patou-Mathis.
Podem-se citar também 12 espécimes encontradas em El Sidrón, na Espanha,
com idade de 50 mil anos, ou os 13 neandertais descobertos na cidade de
Krapina, na Croácia.
(C) JOHN READER/SCIENCE PHOTO LIBRARY/LATINSTOCK
Ossadas com marcas de corte encontradas na região do rio Caves, África do Sul, podem representar indícios de canibalismo
Entre os primeiros Homo sapiens também há evidências de
canibalismo. Nas grutas do rio Klasies, na África do Sul, foram
encontrados ossos humanos com cerca de 80 mil anos de idade, quebrados,
queimados e com sinais de descarnamento. Em Maszycka, na Polônia, foram
encontrados 16 maxilares que remontam ao período Magdaleniano (17 mil a
10 mil anos), aparentemente decapitados e desarticulados. Todos esses
homens teriam sido devorados.
Às vezes, os indícios de
canibalismo podem ser confundidos com um sepultamento em duas etapas: o
depósito do corpo até a fase de decomposição e, depois, o enterro
definitivo dos restos. Em Buran-Kaya, na Ucrânia, em um sítio
arqueológico do período Paleolítico superior (cerca de 32 mil anos
atrás), uma diferença nas marcas do corte entre os ossos de animais e os
ossos humanos leva Sandrine Prat, do CNRS, a acreditar mais na
existência de um ritual post mortem do que na prática antropofágica.
Segundo
Paola Villa, da Universidade do Colorado (EUA), e Jean Courtin, do
CNRS, quatro condições devem ser levadas em consideração para distinguir
um sepultamento de um ato de canibalismo: um relatório do estado
inicial de todos os indícios deve ser feito na pesquisa; o sítio não
deve ter sofrido nenhuma mudança física; os restos humanos devem ser
comparados aos dos animais, e as marcas que eles possuem devem ser muito
bem analisadas. Um estudo experimental feito em conjunto por
pesquisadores da Inglaterra e da Espanha, em 2010, buscou caracterizar a
tipologia exata dos traços deixados por uma mandíbula humana nos ossos,
e assim identificar melhor os casos de antropofagia.
Mesmo
quando há provas de canibalismo, outra dúvida persiste: seria um simples
ato alimentar ou um ritual? A etnologia oferece um campo de suposições
aos estudiosos. Recentemente praticado por vários povos, dos iroqueses
(tribo indígena norte-americana) aos samoiedas (que viviam na Eurásia),
dos astecas (México) aos fores (habitantes da Papua-Nova Guiné), tanto o
exocanibalismo (ato de comer um indivíduo morto em combate no intuito
de apropriar-se de sua força) quanto o endocanibalismo (ato de comer um
membro do próprio clã) são, salvo exceções, rituais. “A existência de um
canibalismo ritual no período Paleolítico talvez seja verossímil, mas
impossível de ser demonstrada”, garante André Leroi-Gourhan,
especialista em pré-história, que vê no caso particular de Krapina uma
antropofagia puramente alimentar, quase sistemática. Opinião contrária
tem Marylène Patou-Mathis, que vê nesse caso um canibalismo ritual, à
imagem daquele – muito codificado e muito social – praticado quase
universalmente por povos contemporâneos ou recentes. “Alimentar ou
ritual, o canibalismo não retira nem acrescenta nada à humanidade dessas
populações pré-históricas”, conclui Marylène.
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