Os casamentos entre parentes de dinastias europeias
eram arranjados para favorecer alianças políticas.
Mas geraram
descendentes com problemas físicos e mentais. Nos Habsburgos, a sequela mais
visível era o queixo protuberante
Conta-se
que, ao pisar na Espanha pela primeira vez, Carlos 5º, do Sacro Império
Romano-Germânico, ouviu o grito de um homem do povo: "Majestade, feche a
boca, pois as moscas deste país são muito insolentes".
Corria o ano de 1517, e o abusado camponês, se
existiu, percebeu de cara um defeito no nobre nascido na cidade de Gante (atual
Bélgica) que vinha assumir o trono espanhol.
Carlos 5º (e 1º da Espanha), que lá estava
como herdeiro de seus avós maternos, Isabel 1ª de Castela e Fernando 2º de
Aragão, os chamados Reis Católicos, era dono de um queixo descomunal.
Tanto que não conseguia unir os lábios e
impedir o acesso de
possíveis insetos voadores, ficando com o ar apalermado, que teria motivado o
gracejo do petulante plebeu.
Seu
feio trineto Carlos 2º da Espanha, além da coroa, levou de brinde a deformação
óssea da face conhecida como prognatismo - a mandíbula se projeta em relação ao
maxilar e o lábio inferior se torna mais saliente.
No caso de Carlos 2º, o queixão acarretava
dificuldades de mastigação e de fala.
Os Carlos, você deve ter reparado, partilhavam
de um defeito genético.
Estigma marcante durante séculos nos
Habsburgos, a poderosa dinastia originária da Suíça, à qual pertenciam os dois
monarcas, o prognatismo ficou tão identificado com a família que é conhecido
também como mandíbula ou lábio de Habsburgo ou de Áustria.
Os rostos desses e de outros soberanos -
Filipe 4º da Espanha, pai de Carlos 2º, por exemplo -
estão bem documentados em pinturas.
Considerada a hipótese de que os pintores de
corte mesmo um mestre como Diego
Velázquez - amenizavam os traços para não irritar seus retratados, é possível
imaginar queixadas mais avantajadas ainda.
O culpado de tudo isso - o primeiro Habsburgo prognata - foi possivelmente
Ernesto 1º da Áustria (1377-1424).
Se a praxe fosse buscar gente de outras
origens para os casamentos, o gene queixudo de Ernesto encontraria novos DNA s
e provavelmente sumiria em sua descendência.
Acontece que os Habsburgos, como outros
nobres, apreciavam matrimônios com parentes, a endogamia.
Era um jeito de preservar o sangue azul e
estabelecer alianças políticas.
A falta de "sangue novo" na herança
genética, no entanto, perpetuava (e acentuava) características físicas
indesejáveis, provocava o surgimento de doenças congênitas e aumentava a
mortalidade infantil naquelas
famílias.
Geneticistas espanhóis traçaram a árvore genealógica de Carlos 2º e constataram
que sua carga genética era equivalente à de um incesto entre irmãos
ou entre pais e filhos.
"Provavelmente,
o gene do prognatismo atuava combinado com outros, o que fazia com que alguns
dos Habsburgos apresentassem a má-formação e outros não", afirma Jaime
Anger, cirurgião plástico do Hospital Israelita Albert Einstein de São Paulo.
O prognatismo aberrante não era a única desgraça de Carlos 2º, sugestivamente
alcunhado de "o Enfeitiçado".
Só começou a andar aos 4 anos e tinha
desarranjos intestinais e febres, além de certo atraso mental.
De
todas as mazelas, nada superou, para fins dinásticos, sua incapacidade de gerar
um herdeiro em seus dois casamentos - Carlos seria estéril.
Quando
morreu, aos 38 anos, aparentava uma idade
Muito
mais avançada.
Além do célebre queixo de Habsburgo, discute- se a presença de outros males de
origem genética transmitidos pelos repetidos casamentos entre parentes das
dinastias europeias.
A porfiria, um distúrbio do metabolismo,
permaneceu por muito tempo sendo a explicação para a insanidade mental do rei
George 3º do Reino Unido (1738-1820).
Nos anos 1960, apareceram artigos com títulos
como A Insanidade do Rei George 3º: Um Caso Clássico de Porfiria e Porfiria nas
Casas Reais de Stuart, Hanôver e Prússia, escritos pelos psiquiatras e
historiadores Ida Macalpine e Richard Hunter. Segundo essa visão, Mary Stuart
(1542-1587) seria a primeira personalidade documentada a passar a enfermidade
adiante em sua árvore genealógica.
No entanto, há outras hipóteses para a
instabilidade de George - em cujo reinado os Estados Unidos se tornaram
independentes dos ingleses. Já na década de 40, falava-se em psicose
maníaco-depressiva.
Timothy Peters, da Universidade de Birmingham,
num estudo do ano passado, prefere considerar a possibilidade de transtorno
bipolar.
Como a porfiria não tem uma manifestação
visual facilmente identificável em pinturas e não se desenterraram os nobres
para fazer um diagnóstico retrospectivo, cravar explicações científicas
definitivas é mais difícil que no caso do escancarado prognatismo mandibular.
Outra enfermidade que foi tida como praga endogâmica é a hemofilia, que teria
se espalhado como verdadeira "doença real" por culpa da rainha
Vitória do Reino Unido (1819-1901).
Há que se considerar dois fatos. Primeiro, que
Vitória provavelmente não herdou o gene hemofílico dos costumeiros matrimônios
entre parentes - no caso dela, teria ocorrido uma mutação cromossômica
espontânea.
Outra é que casamentos entre primos (Vitória
se casou com um de primeiro grau, Albert) raramente aumentam as chances de uma
possível transmissão desse transtorno da coagulação sanguínea.
Isso posto, Vitória, de fato, legou a
hemofilia a algumas pessoas de sua farta descendência.
Entre elas, figura o bisneto Alexei
Nikolaevich Romanov, herdeiro do trono russo assassinado em 1918, aos 13 anos,
pelos bolcheviques.
Tudo isso era especulação até 2009, quando se
publicaram os resultados de exames de DNA feitos em ossos dos Romanovs
descobertos dois anos antes.
Comprovado: Vitória passou ao menino que não
foi czar a hemofilia B, segundo tipo mais comum da doença.
O rei “Paquita”
Características como elevado apetite sexual e loucura foram associadas aos
Bourbons ao longo do tempo.
O rei Fernando 6º da Espanha (1713-1759) teria
transado com a mulher agonizante, Bárbara de Bragança.
Seu
meio-irmão e sucessor, Carlos 3º, era obsessivo: fazia tudo sempre exatamente
nos mesmos horários.
A mandíbula de Áustria, em virtude de
ancestrais comuns, também se fez presente no rosto dos Bourbons.
Como os Habsburgos, eles também se casaram muito entre si.
Uma das histórias mais curiosas está ligada à
rainha Isabel 2ª da Espanha (1830-1904) e ao seu marido, o rei consorte
Francisco 1º (1822-1902).
Ambos eram primos em dose dupla - o pai dele
era irmão do pai dela, e a mãe dele era irmã da mãe dela.
Acontece que Francisco era gay, e Isabel
começou a pular a cerca.
Nos salões e nas ruas de Madri, Francisco
tinha o apelido de Paquita (Chiquinha).
Existe até a possibilidade de os 11 filhos de
Isabel (só 5 chegaram à idade adulta) não serem de Francisco.
Por essa tese, o rei Afonso 12, bisavô do rei
atual, Juan Carlos 1º, seria fruto de um caso de Isabel com o capitão Enrique
Puigmoltó.
Se assim foi, as traições de Isabel serviram
como antídoto contra os males da endogamia bourbônica.
clã internacional
A instituição do matrimônio consanguíneo levou à
formação de um grande clã internacional de monarcas.
O inglês e o
russo médios tinham (e ainda têm) tipos físicos distintos, mas o mesmo se podia
dizer de dois soberanos que reinavam separados por milhares de quilômetros.
George 5º do
Reino Unido (1865-1936) e o czar Nicolau 2º da Rússia (1868-1918) eram netos do
rei Christian 9º da Dinamarca, apelidado de “o sogro da Europa” graças ao
sucesso dos casamentos políticos de seus filhos.
Os primos
George e Nicolau mais pareciam gêmeos (veja foto na pág. ao lado). Em 1893,
quando George, então príncipe e duque de York, casou-se, a plebe presente à
cerimônia, em Londres, chegou a se confundir ao ver o convidado Nicolau.
Por essa época, a mandíbula de Habsburgo já havia cruzado o oceano e chegado ao
Brasil.
Produto de
casamentos entre parentes e com diferentes sobrenomes dinásticos nas costas –
Bragança, Orleans, Habsburgo, Bourbon -, o nosso dom Pedro 2º (1825-1891)
também foi prognata.
Seu avô, dom
João 6º, era filho de um tio com uma sobrinha.
Seu pai, dom
Pedro 1º, e sua mãe, a imperatriz Leopoldina (filha do imperador do Sacro
Império Romano-Germânico e, portanto, Habsburgo de alta linhagem), eram primos
em segundo grau.
João, Pedro
e Leopoldina tinham o queixo deslocado para a frente.
Em As Barbas
do Imperador, a antropóloga Lilia Moritz Schwarcz defende que Pedro 2º deixou
os pelos crescerem no rosto para parecer mais velho e respeitável. Reza outra
lenda que o visual servia mesmo para camuflar o queixão.
A endogamia, no entanto, não se restringiu às monarquias europeias.
Exemplos são encontrados no Egito antigo, onde
havia casamentos entre irmãos.
Cleópatra casou-se com dois, o Ptolomeu 13 e o
14. Em Roma, ocorriam enlaces entre primos, caso de Nero e Claudia Octavia.
Há indícios de que os incas na América do Sul
também casavam irmãos e irmãs sem drama de consciência Ainda que haja nobres
que gostem de se casar entre si, existe uma diversificação bem maior de fontes
conjugais.
O rei Eduardo 8º, em dezembro de 1936, abdicou
do trono britânico para se unir a Wallis Simpson, uma americana duas vezes
divorciada.
Quem ficou no seu lugar foi George 6º, o gago
retratado no filme O Discurso do Rei e pai da rainha Elizabeth.
Filipe de Bourbon, filho de Juan Carlos 1º da
Espanha e da rainha Sofia, casou-se em 2004 com a plebeia Letizia Ortiz.
O príncipe William, filho de Charles e Diana,
encontrou nos corredores da faculdade sua carametade, Kate Middleton.
A outrora fechada família europeia de
monarcas, de uns tempos para cá, é capaz até de aceitar em seu seio um
descendente do lendário e irreverente camponês espanhol. Aquele do mosquito na
boca do rei. //
Fonte: