Cerca de 200 sociedades indígenas vivem no Brasil. São quase 200 culturas, com
língua, religião e organização social distintas entre si. Trata-se de um dos maiores
acervos culturais do mundo, que tem atraído ao País centenas de estudiosos e
especialistas, principalmente lingüistas e antropólogos. Este acervo, entretanto, vive
sob constantes ameaças, que têm como causa básica os conflitos fundiários e o
avanço dos não-índios sobre as terras indígenas. A Constituição Federal estabelece
como direito inalienável aos povos indígenas a posse sobre a terra que ocupam,
mas, dada a vastidão do território brasileiro e a escassez de recursos, a agência
governamental encarregada de defender e garantir os interesses e os direitos
indígenas, a Funai (Fundação Nacional do Índio), tem dificuldades de fazer cumprir
a legislação, garantir um adequado atendimento de saúde e educação e
implementar os projetos de atividades produtivas
A cultura material dos povos indígenas expressa aos outros setores da sociedade a
sua visão de universo e, quase sempre, cumpre uma função utilitária no cotidiano
da comunidade tribal. Mas esta visão vem sendo influenciada pelas mais variadas
formas de pressão a que estão submetidos os povos indígenas brasileiros, cujas
terras são ambicionadas pelos regionais, em virtude das riquezas da flora, fauna e
do subsolo.
A carência de recursos, aliada à influência das populações não-indígenas tem
repercutido na produção cultural dos povos indígenas brasileiros. Excluem-se dessa
tendência os indígenas que ainda vivem isolados, sem qualquer contato com o
chamado mundo civilizado, que a Funai estima em cerca de 60 comunidades na
Amazônia.
A influência dos regionais sobre os povos indígenas pode ser constatada nas peças
artesanais. Nos últimos anos, os técnicos da Funai verificaram uma queda na
qualidade dos artesanatos indígenas. Este processo coincide com o avanço dos
não-índios sobre seus territórios, que tem provocado modificações ambientais e
privado os índios da matéria-prima necessária à produção da sua arte. Além disso,
os baixos investimentos nas áreas de educação, saúde e atividades produtivas,
deixou as sociedades indígenas mais suscetíveis às influências dos regionais e
dependentes dos benefícios do Estado.
A necessidade de sobreviver em condições adversas levou os Pataxó Hã-Hã-Hãe,
localizados no sul da Bahia, a produzirem intensamente seus artesanatos, sem a
tradicional qualidade. Cercados por fazendeiros e ainda hoje lutando pelo direito à
posse imemorial da terra por eles ocupada, seu espaço físico foi bastante
desmatado e sua flora local reduzida. O artesanato Pataxó está longe de
representar toda a sua cultura material. Hoje, eles produzem peças visando a
arrecadar recursos que lhes permitam consumir bens e produtos produzidos pelosnão índios. Anteriormente, o artesanato Pataxó era rico em penas de aves típicas
da região e que revelavam aspectos da sua cultura mítica. As penas usadas hoje
são de aves comuns, tingidas com cores fortes, que estão longe de retratar a
verdadeira cultura Pataxó. Eles optaram ainda pela produção de pentes e outros
apetrechos em madeira, que têm boa aceitação comercial.
Os índios Fulniô, no Estado de Pernambuco, também enfrentam situação
semelhante. Exímios na arte do trançado, os Fulniô encontram muita dificuldade em
obter matéria-prima para a produção de cestos, tapetes e outras peças. Assim, os
Fulniô também fazem trabalho em madeira (gamelas, pentes, entre outros objetos)
com objetivo puramente comercial. A pressão dos civilizados, entretanto, não
alterou o comportamento religioso nem influiu na organização social do grupo. Os
Fulniô têm a preocupação de preservar a própria língua, realizar seus rituais e
ensinar aos mais jovens as tradições do grupo.
Os Guarani-Kaiowá, naturais do Mato Grosso do Sul, são outro exemplo de povo
extremamente afetado pelo contato com a sociedade nacional. A cada ano é mais
elevado o número de suicídios nesse grupo. Nos últimos anos, a Funai tem
investido muito para recuperar os territórios tradicionalmente ocupados pelos
Guarani-Kaiowá e dominados irregularmente por produtores de soja e
agropecuaristas, a fim de garantir a sobrevivência física e cultural deste grupo que,
no passado, se espalhava da região Centro-Oeste até o Sul do País.
A perda gradual do espaço geográfico da aldeia (tekoha) comprometeu a
organização social dos Guarani-Kaiowá, fortemente ligada aos seus conceitos
míticos. O espaço da aldeia tem uma relação com o sagrado e a sua perda implica
em falta de referencial para as demais atividades do grupo. Não só a perda do
Tekoha alterou os aspectos culturais desses índios. O processo de anulação dos
valores culturais dos Guarani-Kaiowá se deveu, em grande parte, à presença de
várias seitas protestantes, que penetram no grupo com o objetivo de dar-lhes
assistência. Esta influência das missões religiosas, impondo conceitos estranhos a
eles, como o do pecado, gerou conflitos.
Sem o referencial místico, intrínsico à terra que deveriam ocupar, e contaminados
por outros entendimentos de religiosidade, muitos índios viram e ainda vêem no
suicídio uma alternativa para acabar com o próprio conflito interno. Quando não
tomam esta atitude extrema, entregam-se ao consumo de bebidas alcóolicas, que,
igualmente, leva a sua degradação. Alguns, entretanto, buscam a alternativa de se
empregarem nas fazendas instaladas em suas terras tradicionais. Esta decisão, por
si só, já representa um total distanciamento do padrão cultural de um GuaraniKaiowá. Os índios são sub-empregados. Entretanto, é a forma que vários GuaraniKaiowá encontram para, pelo menos, se manterem vivos na esperança de poderem,
um dia, retomar o tekoha.
As populações indígenas do Sul do País, como os Guarani, Kaingang e Xokleng
não têm uma produção relevante de cultura material, que se manifeste através deum artesanato próprio, seja ele cerâmica, arte plumária ou outros objetos. Isto pode
ser comprovado pelo fato de o Departamento de Artesanato Indígena (Artíndia) da
Funai não receber peças produzidas por esses povos, que vivem espalhados pelos
estados de São Paulo, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul. Embora
preservem a língua e seus hábitos, estes grupos enfrentam sérios conflitos pela
posse na terra, devido à alta densidade demográfica registrada naquela região. Esta
luta pelo espaço físico e o longo contato com a população branca levaram os índios
a praticamente abandonar a sua produção artística. Grande parte desses grupos
incorporou elementos predominantes no comportamento da sociedade nacional e
se dedica à atividade agropecuária.
Programa de ação cultural
A Fundação Nacional do Índio acredita que a cultura indígena somente sobreviverá,
em toda a sua riqueza, com um trabalho integrado, envolvendo as áreas de saúde,
educação, meio ambiente e atividades produtivas. Somente esclarecidos os índios
poderão entender os efeitos negativos da degradação ambiental sobre as suas
manifestações culturais, sobre a saúde do grupo e sobre a sua organização social.
O mesmo entendimento vale para as áreas de saúde e atividades produtivas. O
índio enfermo é incapaz de produzir e se lhe faltar meios materiais para suprir as
necessidades básicas ele, igualmente, não terá capacidade de preservar suas
tradições.
Os técnicos da Funai estão empenhados em elaborar um programa, a ser
implementado a partir de 1995, que se subdivide em dois grandes projetos:
1)Memória Indígena e 2) Difusão da cultura indígena à sociedade.
O projeto Memória Indígena tem vários objetivos, destacadamente o de registrar os
valores culturais, atentando para a sua proteção e disseminação entre os vários
setores da sociedade. Para isso, a Funai pretende desenvolver ações junto às
sociedades indígenas, a fim de garantir-lhes o suporte técnico e científico para que
retomem a produção de peças e objetos que retratam a especialidade do grupo,
obedecidos os critérios e técnicas tradicionais. O projeto Memória prevê ainda a
formação de acervos das várias culturas materiais dos grupos tribais brasileiros.
Este trabalho de preservação e recuperação dos valores culturais indígenas, que a
Funai pretende intensificar em 1995, vem sendo experimentado em várias tribos
que habitam a região Centro-Oeste.
A educação bilingüe das comunidades indígenas influiu na organização social das
tribos. Muitos jovens deixaram suas aldeias e se afastaram das tradições culturais
para buscar conhecimento formal nos centros urbanos. Esta migração foi forçada,
em parte, pelo fato de os povos constatarem a necessidade de formar pessoal
capaz de entender a linguagem e os códigos dos brancos, e, assim, saberem lutar
pela defesa dos seus interesses. Hoje, os índios mais velhos, anteriormente figuras
sagradas dentro da organização social dos grupos, reclamam da rebeldia dosjovens, que nem sempre aceitam as suas orientações.
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